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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Descer da cruz

Um livro polêmico: “A Última Tentação de Cristo”. Conforme consta no Wikipédia, este romance tem uma introdução em que o autor Níkos Kazantzákis sustenta que “a tentação mais forte que pode ter um homem é a de ser um homem comum”.
Interessante esta idéia. Nos últimos meses tenho refletido sobre a decisão que muitas vezes tomamos de “descer da cruz”.
“Os que passavam por ali o insultavam, balançando a cabeça e dizendo: ‘Ah! Tu que destróis o templo e o reconstróis em três dias, salva-te a ti mesmo, descendo da cruz’. Do mesmo modo, também os sumos sacerdotes zombavam dele entre si e, com os escribas, diziam: ‘A outros salvou, a si mesmo não pode salvar. O Messias, o rei de Israel desça agora da cruz, para que vejamos e acreditemos!’ Os que foram crucificados com ele também o insultavam.” (Mc 15, 29-32).
Penso que muitos cristãos já se imaginaram nesta cena. Eu mesmo já imaginei o que faria diante desta tentação: faria com que os cravos saltassem dos meus punhos e, com as mãos, quem sabe com alguns raios e uma leve fumaça de fundo, cinematograficamente, faria com que cada um daqueles insanos dobrassem seus joelhos e reconhecessem Aquele a quem insultavam: o próprio Deus. Se Jesus pensasse como eu, ele teria descido da cruz.
Mas o que fez com que Jesus permanecesse na cruz? Não foram os pregos ou cravos. De que forma Ele pensava para continuar ali, aparentemente inerte diante de uma situação que ele poderia controlar?
Hoje minha Angela me falava sobre as desvantagens de se ter uma casa na praia. Se tivéssemos, sempre que possível, iríamos para a mesma praia. Estaríamos condicionados, presos a um bem que adquiriríamos. Como não temos, podemos escolher praias diferentes, conhecer lugares novos, mesmo que próximos, toda vez que pensamos em ir para uma praia. Quem tem a casa de praia possivelmente diz que também pode escolher, mas, provavelmente, passa muito tempo sem optar, escravo de sua condição.
Esta semana a diretora da escola de nossas filhas também falava a mesma coisa sobre as correntes que prendem nossas crianças. Em muitas situações elas não podem escolher.
Assim como nós adultos: não temos esta liberdade porque não desembrulhamos este presente que recebemos de Deus.
Mas este não ter não significa não poder ter. Não temos porque construímos nossas próprias correntes, nossas prisões. Elas não permitem que vejamos além do nosso próprio egoísmo. Construímos situações que limitam nossas possibilidades. Condicionamo-nos de tal forma que a nossa única escolha possível é ficar na cruz porque estamos presos a ela ou, de outro lado, a nossa única opção possível é descer da cruz, simplesmente porque não a entendemos, simplesmente porque nos limitamos a sermos homens e mulheres comuns.
Jesus escolheu a loucura da cruz porque era livre para tanto. Ele não desceu da cruz porque não era escravo de si mesmo: pôde escolher ficar na cruz e morrer, para depois ressuscitar!
Ele foi incomum. Enfrentou seus medos. Libertou-se de seus horrores internos. Assumiu suas dores e encontrou o sublime.
Eu, hoje, não sou capaz disto. Até fiquei na cruz muitas vezes, mas não desci dela porque eu estava pregado. Não porque escolhi ficar lá. Acontece muitas vezes com muitos homens e mulheres de boa fé. Ficamos na cruz porque temos princípios, porque nossa fé nos preceitua, porque nos condicionamos, não porque fizemos uma escolha livre. Os cristãos encontram o sentido da cruz no momento em que podem tirar os cravos e mesmo assim ficam lá. E creio que temos etapas a vencer para alcançar a graça de escolher ficar na cruz. Ao menos eu: parece que vou ter que descer algumas vezes para depois poder escolher ficar. Vou ter que esbravejar. Deixar meus sentimentos aflorarem. Talvez eu deixe outras correntes me prenderem. Talvez eu encontre outros medos. Talvez outros poços. Talvez eu escolha ser um homem comum.
Talvez somente pensar nisto tudo seja o suficiente para eu livremente escolher ficar na cruz. Ainda não sei ao certo. Neste momento, eu desci da cruz... ao menos me imagino longe dela, assim como o Jesus de Níkos Kazantzákis. E talvez eu também acorde no final de meu livro e veja que fiz a escolha certa.

Paulo Cesar Starke Junior

Um comentário:

  1. Descer, ficar... descer, subir e ficar... descer, subir e permanecer...
    Assim é a vida, vamos aprendendo, descendo e subindo... um dia ficaremos!

    Alexandre Rossi

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